A questão da autoridade profética da Igreja

  • 13/11/2025
A questão da autoridade profética da Igreja
A questão da autoridade profética da Igreja (Foto: Reprodução)

Este artigo analisa a questão da autoridade profética da Igreja Cristã, focalizando o problema teológico decorrente da sua aliança com estruturas de poder político, da oficialização de Constantino até os dias atuais. Argumenta-se que a institucionalização da fé, simbolizada pela "Aliança Trono-Altar", gerou uma tensão perene entre a função sacerdotal (de preservação e estabilidade) e a função profética (de denúncia e anúncio). Por meio de uma metodologia histórico-teológica, o artigo percorre os principais marcos desse relacionamento, demonstrando como a crítica profética foi sistematicamente cooptada, silenciada ou marginalizada quando a Igreja se tornou parceira do poder secular, e como ressurge, na contemporaneidade, em novas formas e contextos.

1. INTRODUÇÃO

A autoridade profética, entendida como a vocação da comunidade de fé para falar a verdade ao poder, denunciar a injustiça e anunciar os propósitos de Deus na história, constitui um dos pilares da identidade bíblica do povo de Deus. No entanto, a trajetória histórica do Cristianismo, particularmente a partir do século IV, é marcada por um dilema fundamental: a tensão entre essa vocação profética e a sedutora oferta de estabilidade, influência e proteção oferecida pelo Estado. Este artigo disserta sobre a tese de que a "Aliança Trono-Altar", formalizada com o Imperador Constantino, inaugurou um problema teológico de profunda consequência: a domesticação do profetismo em prol da manutenção da ordem e do poder eclesiástico.

O objetivo é analisar como essa simbiose entre a autoridade espiritual e o poder temporal reconfigurou o exercício da autoridade profética, transformando-a, em muitos contextos, de uma voz de contestação em um instrumento de legitimação divina para o status quo. A metodologia adotada é histórico-teológica, percorrendo de forma crítica os períodos da Cristandade, da Reforma, do Iluminismo e da Pós-Modernidade, para identificar os mecanismos de supressão e os espaços de resistência profética.

2. A VIAGEM CONSTANTINIANA: A GÊNESE DO PROBLEMA

O Édito de Milão (313 d.C.) representa um divisor de águas na história do Cristianismo. A transição de uma seita perseguida para a religião oficial do Império Romano, consolidada sob Teodósio I, alterou radicalmente a natureza da autoridade eclesiástica.

A função profética, outrora exercida em oposição ao "mundo" (representado pelo poder imperial pagão), foi submetida a um profundo paradoxo.

A "Paz Constantiniana", longe de ser apenas uma benção, implicou na sacralização do poder político. O Imperador, agora "bispo dos assuntos externos" na famosa expressão atribuída a Constantino, tornou-se o protetor da fé e, consequentemente, um agente de influência direta nos assuntos doutrinários e disciplinares da Igreja. Nesse novo arranjo, a denúncia profética contra as injustiças do Estado tornou-se um risco político e eclesial. A voz que deveria criticar o poder agora dependia dele para sua sobrevivência e expansão.

Aqui, o profetismo foi cooptado. Em vez de denunciar a violência imperial, a teologia política da época frequentemente a justificava. Em vez de defender os pobres e oprimidos, a hierarquia eclesiástica passou a identificar-se com os interesses da aristocracia e da estrutura imperial. A autoridade profética não desapareceu, mas foi canalizada para questões internas de ortodoxia, enquanto a crítica social era, na melhor das hipóteses, atenuada e, na pior, silenciada.

3. A CRISTANDADE MEDIEVAL: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SILÊNCIO

Durante o período da Cristandade, a aliança trono-altar solidificou-se na forma de uma sociedade organicamente religiosa, onde a Igreja e o Estado eram os dois braços de um mesmo corpo. Neste contexto, a autoridade profética enfrentou seu maior desafio: como denunciar um sistema do qual a Igreja era parte integrante e fundamento ideológico?

A resposta manifestou-se de duas formas principais:

1. A Crítica Interna Reformista: Figuras como São Francisco de Assis, com seu voto de pobreza radical, e os valdenses, representaram um profetismo pela via da contra-cultura. Suas críticas não eram primordialmente políticas, mas uma denúncia implícita da riqueza e do poder temporal da Igreja institucional, que a afastava de sua missão original.

2. A Supressão das Vozes Dissidentes: Movimentos que desafiavam diretamente a autoridade papal ou a ordem social, como os cátaros, foram brutalmente suprimidos por meio de cruzadas e da Inquisição. Neste ponto, a Igreja não apenas silenciava a voz profética, mas utilizava o aparato estatal para exterminá-la fisicamente, um ápice da perversão da aliança trono-altar.

A teologia política do "Deus dos Batalhões", que legitimava as Cruzadas, e a doutrina das "Duas Espadas" (poder espiritual e temporal), são exemplos de como a linguagem da fé foi mobilizada para servir aos interesses de poder, esvaziando a autoridade profética de seu caráter contestatório

4. A REFORMA E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES DA ALIANÇA

A Reforma Protestante do século XVI rompeu a unidade da Cristandade, mas não necessariamente com o modelo da aliança trono-altar. Pelo contrário, em muitos casos, reconfigurou-o.

Luteranismo: A doutrina luterana dos "Dois Reinos" concedia grande autoridade ao príncipe territorial como "emergência de Deus" para governar a ordem temporal. Enquanto isso teoricamente protegia a Igreja de ser instrumentalizada, na prática, frequentemente resultou numa Igreja submissa ao Estado (o que se tornou evidente com a submissão da Igreja Luterana alemã ao regime nazista no século XX).

Anglicanismo: O Ato de Supremacia (1534) constitui a expressão máxima da renovação da aliança: o monarca torna-se a cabeça suprema da Igreja na Inglaterra, fundindo de forma inextricável as identidades nacional e religiosa.

Calvinismo e as Seitas Radicais: Por outro lado, o Calvinismo, especialmente em Genebra e posteriormente nas colônias americanas, buscou estabelecer uma teocracia onde a Igreja ditava as normas ao Estado. Já os anabatistas e outras seitas radicais, rejeitando qualquer ligação com o Estado, representaram a recuperação de um profetismo sectário e perseguido, mantendo viva a chama da denúncia contra a corrupção de ambas as esferas.

5. A MODERNIDADE E O DESMANTELAMENTO DA CRISTANDADE

O Iluminismo e a ascensão do Estado secular laico forçaram um reposicionamento drástico. A Igreja perdeu seu lugar de privilégio e foi, em muitos casos, destronada. Ironia da história, este "exílio" criou as condições para um renascimento profético.

Sem a proteção do Estado, as igrejas foram forçadas a redescobrir sua identidade como comunidades de fé em um mundo plural. Figuras como Martin Luther King Jr. e Desmond Tutu exemplificam como a autoridade profética, divorciada de ambições políticas diretas, pôde ser exercida com imensa força moral para confrontar sistemas de opressão como o segregacionismo racial e o apartheid. A Teologia da Libertação, na América Latina, representou outra face deste profetismo, centrado numa "opção preferencial pelos pobres" e numa leitura crítica das estruturas sociais e econômicas, muitas vezes em oposição direta a governos apoiados pelas hierarquias eclesiásticas conservadoras.

6. A QUESTÃO ATUAL: NEOPENTECOSTALISMO, POPULISMOS E O RETORNO DA ALIANÇA

Na contemporaneidade, observa-se um fenômeno preocupante: a reemergência de uma nova aliança trono-altar, particularmente em contextos evangélicos neopentecostais e em nações com governos populistas. Esta aliança manifesta-se através de:

Troca de Favores: Líderes religiosos oferecem blocos de votos e apoio político em troca de benefícios como cargos públicos, acesso à mídia e a promulgação de uma agenda moral-conservadora.

Teologia da Prosperidade e Nacionalismo: Uma teologia que santifica o sucesso material e frequentemente se funde com um nacionalismo exacerbado, abençoando projetos de poder e legitimando discursos de ódio e exclusão.

Silenciamento do Profetismo: Dentro dessas comunidades, vozes que criticam essa aliança ou denunciam injustiças sociais são frequentemente caladas, acusadas de serem "comunistas", "divisivas" ou de se desviarem do "foco espiritual". O profeta é substituído pelo lobista.

Este cenário representa a antiga tentação “constantiniana” em roupagens modernas: a abdicação da autoridade profética em troca de influência temporal, com o agravante de que o poder midiático e eleitoral amplifica enormemente o alcance e as consequências dessa aliança.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise histórica demonstra que a questão da autoridade profética da Igreja é inextricavelmente ligada ao seu relacionamento com o poder secular. A aliança trono-altar, iniciada com Constantino, mostrou-se um mecanismo eficaz para a domesticação do profetismo, transformando a Igreja de uma voz crítica em um pilar de sustentação do status quo.

No entanto, a história também atesta que a voz profética é resiliente. Ela ressurge nas margens, nos movimentos de reforma, nas comunidades perseguidas e nos indivíduos corajosos que, em cada geração, se recusam a calar em nome de uma conveniência institucional. O desafio perene para a Igreja, em qualquer contexto histórico, é discernir a quem ela serve: se ao Deus revelado em Jesus Cristo, que tomou o partido dos marginalizados, ou aos Césares de plantão, que oferecem poder em troca de silêncio. A fidelidade à sua missão profética depende da capacidade de resistir à sedução do trono para permanecer fiel à mensagem do altar da cruz – um símbolo não de poder, mas de serviço e sacrifício redentor.

REFERÊNCIAS:

BOFF, Clodovis. Teologia e Prática: A práxis do Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2007.

CAVANAGH, William T. A Ilusão Religiosa Secular: Como a Adoração se Torna um Genocídio. São Paulo: Paulus, 2012.

HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial. São Paulo: Paulinas, 2009.

MÍGUEZ, Néstor O. Para uma Teologia da Libertação no Século XXI. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2015.

PAGOLA, José A. A Igreja na Encruzilhada: Da Aliança Constantiniana ao Seguimento de Jesus. São Paulo: Fonte Editorial, 2018.

YODER, John H. A Política de Jesus. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2017.

 

Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor (Português/Inglês - SEE-MG, EJA/EM/EFII), colunista do Guia-me e professor de Teologia em diversos seminários. Possui Licenciatura em Letras (2024), Bacharelado/Mestrado em Teologia (2013/2015) e pós-graduação em Docência. Autor de 2 livros de Teologia, tem mais de 20 anos de experiência ministerial e é membro da Assembleia de Deus em BH.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

Leia o artigo anterior: A Teologia do Credo de Nicéia: História, política e fundamentações doutrinárias

FONTE: http://guiame.com.br/colunistas/daniel-ramos/questao-da-autoridade-profetica-da-igreja.html


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